terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Aquela a quem um dia chamei confidente

O meu primeiro emprego pós-licenciatura não conseguiu cativar-me para um mergulho nas entranhas mais obscuras da informática ao contrário de colegas que eu lá tinha que pareciam deleitar-se com toda aquela atmosfera. E o regozijo era tão grande que um deles, talvez em ritual de celebração, tinha como lanche preferido uma sandes dupla de chocolate, que não era mais que um pão aberto com outro pão dentro e um chocolate bounty no interior. Quando passava por mim, o cumprimento da praxe “Tudo?!”, e eu lá respondia mudando o ponto (de interrogação ou exclamação, nunca percebi qual dos dois) para um simples ponto final ou até umas reticências, consoante o estado de espírito… A ideia até deveria ser eu sentir-me lisonjeado pela reacção das pessoas quando sabiam onde eu trabalhava mas a verdade é que, ao passar na entrada e acenar ao porteiro de serviço a minha consciência apercebia-se que era o último momento de alegria do dia até à hora de saída, em que o aceno levava uma carga extra de alívio a acrescentar à felicidade.
Provavelmente estou a exagerar mas quando um simples aceno ao porteiro (não querendo de forma alguma desprestigiar o cargo) constitui uma marca na memória de um passado já com uma certa distância, alguma coisa há-de significar. Ainda se fosse uma porteira com rasgado sorriso mas nem era o caso. Distância essa multiplicada por tudo de bom que já tive o privilégio de fazer depois dessa etapa. E como é óptima a terapia oferecida pelas coisas boas que nos acontecem quando temos algo pendurado a que queremos dar uma tacada para qualquer buraco negro…
Mas a recordação mais marcante desse tempo será sempre aquela amiga, a minha confidente, quase um anjo da guarda. Não quero desconsiderar as pessoas que lá conheci e até contactei com gente porreira mas com essa amiga desenvolvi uma relação espiritual intensa, diria até intensamente libidinosa! E tudo por causa daquela sala sinistra que me atribuíram como posto de trabalho durante meses a fio. Era eu e alguns computadores e servidores à minha volta; por vezes irrompia gente por aquela porta envidraçada, falando, barafustando, uns furiosos com as máquinas, alguns com bolas anti-stress, outros com um cigarro na boca e mais um na mão, pronto para ser o próximo prego?, pior que isso, ali entre os dedos esquecido, o que dá para ter uma ideia das dependências, dos vícios… mais da máquina que da própria nicotina. A sala podia considerar-se também um museu – à minha frente uma parede de vidro permitia vislumbrar as antigas máquinas com que se trabalhava na antiga companhia nacional de telefones em tempos idos, saudosos para uns, desconhecidos para outros. Após a breve satisfação da curiosidade, decido espreitar por uma das janelas laterais que oferecia uma magnífica vista… para o cemitério. Mas prestando atenção a outra dava de caras com ela, e desvendo aqui a misteriosa e fiel amiga que entrou na minha vida naquele tempo, bem segura e emproada, lá estava ela – a Árvore.
Com o tempo tornou-se a minha confidente, e foi escolhida por não encontrar perfil em ninguém para o ser relativamente ao que me ia verdadeiramente na alma, nem mesmo a pessoa com quem partilhava mais segredos na altura. O que eu tinha para dizer era de grau que me ultrapassava a mim próprio e, por conseguinte, a razão de qualquer ser da minha espécie. Por isso aquela árvore era a mais indicada; para ela, que aguentava ali estoicamente de pé há tanto tempo, o que eu tinha para dizer não lhe faria dobrar de espanto um só ramo. Enquanto ouvia o que me ia na alma, deixava-me assistir ao seu ciclo periódico de vida, desde o nascimento das primeiras folhas que a iam pintando com uma manta verde que daria abrigo daí a quase nada a tantos e barulhentos pássaros que vinham dificultar a conversa, talvez ciumentos daquela nossa cumplicidade. Os dias passavam, contavam-se as semanas, arrastavam-se penosamente os meses, e eis que chegava a estação em que, de forma ousada, ela começava a despir-se até se mostrar completamente fazendo-me ruborizar a mente (vá lá que a minha timidez, vergonha e afins não se mostram na face, é um trunfo que eu fui aprendendo a usar desde miúdo…).
Um dia mudaram-me de sítio e aí sucumbi; concluí que a árvore era o elo que me prendia àquele lugar estranho; fui embora e passei a dedicar-me ao que faço hoje, ficando por saber até quando. Acenei pela última vez ao porteiro, sem nostalgia mas lamentando não a poder trazer comigo. Agora que a lembrança trouxe a saudade, ganha força a ideia de um dia destes lhe fazer uma visita e talvez ganhe também coragem para a abordar com um assunto melindroso a fazer lembrar as dúvidas na cabeça de Manuna (protagonista do livro “as micaias de manuna” do escritor Augusto Carlos - um bom livro para quem quer compreender os porquês com que alguns miúdos adoram brindar os pais e quem mais lhes apareça à frente): porque te despes tu quando nós mais roupa vestimos?
Lamentavelmente não a posso cá apresentar mas fotografei uma que ilustra bem alguns traços que eu vejo na existência de todas as árvores que conheço - solidão e resistência.

Se eu fosse Pablo Neruda ou pelo menos o seu carteiro, escrevia-lhe uma ode; sendo quem sou e a mais não podendo aspirar, limito-me a eternizá-la nestas simplórias palavras...

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