terça-feira, 4 de novembro de 2008

Espionagem no comboio da aldeia global

Já toda a gente se apercebeu que sou um adepto incondicional do comboio, era capaz de dar a volta ao mundo sobre carris se fosse possível. Ao ritmo do “pouca-terra” descontraio, observo, sonho, vivo…
A juntar a esta amálgama de sensações acrescento o facto de, ali sentado, poder discretamente olhar nos rostos cansados do trabalho, deprimidos com a vida, preocupados com algum problema recente, resignados com um não tão recente, ávidos pela partida, ansiosos pela chegada, animados em conversa de grupo, mexidos pela música que toca no leitor de MP3 (alguns em altos decibéis como se os outros tivessem pedido para que fossem o seu DJ de serviço), concentrados na SMS acabada de chegar, apressados a responder, atentos na leitura, distraídos na conversa ao telemóvel, alguém menos distraído a falar com alguém que está em França partilha de forma preocupada informações sobre a crise transmitida por outros parentes que estão nos States e no Japão, a aldeia global em todo o seu esplendor, até na crise... Há ainda olhares perdidos no horizonte, um a ler um livro que eu já li (será que imagina o final surrealista?), outros a ler livros que eu não li (fico com curiosidade de uns, de outros nem por isso), alguém que tenta ler a todo o custo o de outrem e fica rezingona por virarem a página sem ter chegado ao fim, quem a manda ser impertinente?, há também os novos leitores (os da imprensa gratuita), os obcecados por palavras cruzadas que buscam desenfreadamente uma solução difícil num compartimento algures esquecido do seu cérebro, e não esquecer a mulher que dá os últimos retoques na maquilhagem. O que mais me faz confusão é ver gente a ler de pé; é que, para mim ler é como comer, tem que ser sempre sentado para saborear bem cada palavra.
Entretanto alguém já se deve ter apercebido que eu também aproveito a viagem para fazer alguma coisa, espero é que não percebam que desta vez estou a fazer espionagem… tento disfarçar olhando Lisboa pelas janelas de ferro da ponte, hoje parece-me mais entorpecida pelo sono, ou então serei eu porque dormi bem menos do que o tempo que preciso para usufruir desse prazer que a vida me dá e atiro as culpas injustamente à cidade.Voltando com os olhos para as pessoas reparo numa rapariga que, impaciente, pensa em voz alta no que está a ler e vai tirando pequenas notas. De repente, surpreende-me com a pergunta de qual é a próxima estação mas num sotaque americano bem engraçado e rosto espanhol?, italiano? Lá atirei com as vulgares hipóteses mas nada disso!, francesa de gema – mas sossegou-me porque é normal não acertarem, uns vêem traços árabes, outros judeus,… confuso? Talvez, mas penso que ela simboliza bem o que podemos ser todos nós – o resultado da encruzilhada cada vez mais entrelaçada de gente que um dia partiu do mesmo ponto, se dividiu, se moldou, se definiu para muito tempo depois se (re)aproximar, se (re)misturar, se (re)fundir. Curiosamente, o livro que ocupava a rapariga que nem o nome sei, talvez ande por cá em Erasmus, tinha como título “Anatomia do Corpo Humano”. Eloquente? Eu sei que não!

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito aprazível, assim como todo o teu blog, acho que é sem duvida um ponto de passagem para mim. = ) Beijos e continua sempre assim com esse coração enorme…

Anónimo disse...

Ritmado e atento este texto, que de forma criativa confirma a visão atractiva de viajantes e viagens.

Keep going.